O Jegão

O SEU PORTAL DE ENTRETENIMENTO.

Contos Nordestinos

Cláudio Aguiar

Cláudio Aguiar nasceu no Ceará em 1944. Estudou no tradicional Liceu do Ceará e, mais tarde, a partir de 1962, radicou-se definitivamente em Pernambuco. Estudou também no Ginásio Pernambucano e formou-se pela Faculdade de Direito do Recife. É doutor pela Universidade de Salamanca, Espanha.

Atuou em diversos jornais como repórter e depois como colaborador literário do Jornal do Commercio e do Diário de Pernambuco.

Conquistou mais de uma dezena de prêmios literários nacionais e, em 1994, em virtude do conjunto de sua obra, foi escolhido entre escritores

latino-americanos para receber em Espanha o prêmio-homenagem, de caráter internacional, perante a prestigiosa Cátedra de Poética Fray Luís de León, da Universidade Pontifícia de Salamanca, ocasião em que lhe outorgaram o título honoris causa pela mesma Universidade. Pertence a diversas entidades literárias e culturais do Brasil. Dos treze livros publicados destacamos os romances Caldeirão, A Volta de Emanuel, Lampião eos Meninos, Os Anjos Vingadores e A Corte Celestial. Escreveu, entre outros, os dramas Suplício de Frei Caneca, Brincantes do Belo Monte e Antes que a Guerra Acabe. Publicou, ainda, os ensaios Os Espanhóis no Brasil e Franklin Távora e o seu Tempo. Atualmente é membro do conselho editorial de Calibán, uma revista de cultura, publicada no Rio de Janeiro.

 

Cláudio Aguiar

O Último Combate
 
Era inacreditável, mas o meu amigo tenente Ribeiro estava morto sobre um banco da praça. Como poderia um ex-combatente, detentor de medalhas de bravura nos campos de batalha de Itália, terminar assim? A única coisa que podia fazer era reconhecer o morto, avisar aos familiares e prestar testemunho à autoridade que viesse fazer o levantamento do cadáver.

Ao vê-lo ali com os olhos abertos, congelados num assombro, a pele franzida pelo inusitado impulso do último gesto, uma linha de sangue jorrada de sua cabeça sobre a pedra quente, não me foi difícil imaginá-lo vivo, agitado, contando suas aventuras. Suas palavras, em turbilhão, ressoando numa voz forte mas monocórdica, tinham algo de saudosismo de um tempo que seria melhor esquecer, ainda que a maioria, não sei por que motivo, insista em lembrar: as misérias das guerras. É muito estranho que entre dois

bandos que se matam numa guerra, no final das contas, o vencedor tem ao seu lado as benes-ses divinas, como se a vitória e o poder unissem-se em nome do bem, en-quanto a derrota e o poder aliam-se para armar desculpas mentirosas capazes de trans-formar fracassos em bandeiras levantadas por inocentes.

Nos seus relatos havia também um tom de veracidade e frescor, pois revelava detalhes sobre pessoas, lugares e coisas sem perder de vista o interesse pelo alvo central: o momento de concentrar-se no tiro contra o inimigo. Acertar ou não, para ele se tornava um tema secundário. O importante era atirar contra um alemão, símbolo do demônio, do mal, do incivilizado, do guerreiro estúpido e dominador. Quando alguém perguntava se na hora de apertar o gatilho ele não sentia um arrepio pelo fato de atirar num ser

humano, a resposta sempre vinha com as mesmas palavras: "Na guerra se mata por patriotismo e não por prazer".

Um dia encontrei-o visivelmente assustado. Tomamos o mesmo ônibus e notei que ele não conseguia ordenar os assuntos nem ficar tranqüilamente parado ao meu lado. Virava-se a todo estante e, num dado momento, pediu para que eu verificasse se o tipo louro havia entrado no ônibus. Olhei para trás e, com efeito, vi um homem com pinta de estrangeiro. Limitei-me a balançar a cabeça afirmativamente. Ele se levantou e, segurando com firmeza sua bolsa de couro, deu sinal de parada. Desci com ele. Não adiantou dizer que

aquele homem era um simples turista, talvez nem alemão fosse. O meu amigo protestou e, olhando para os lados, confessou o que nunca tivera coragem de dizer a ninguém:

- Você é o primeiro e talvez o único a saber do que vou lhe contar: posso estar enganado, mas vi na luz dos olhos daquele alemão, o mesmo olhar do último inimigo que abati no campo de batalha da Itália. Era um dia frio e cinzento, de pouca luminosidade. Eu comandava um grupo de oito homens e invadimos uma região ainda dominada por focos de inimigos alemães. Andávamos com cuidado por um terreno minado, o que nos ajudou a surpreender os inimigos, talvez uns cem homens, descansando sobre os escombros do velho castelo medieval. Em circo, sob a mira de nossas metralhadoras, os cercamos. Eles não tiveram tempo de reagir. Houve um instante em que eu fiquei sem saber o que fazer. Notei, então, que começavam a falar entre eles, em alemão. Mesmo sem saber uma palavra desta língua, pensei: eles combinam nos atacar num assalto rápido porque são maioria - mais ou menos cem contra oito. Aí, num salto, fiz gestos para que se dirigissem ao paredão. Como não atenderam de imediato, fiz um disparo para mostrar que não brincava. Eles correrão para a frente do paredão e, sem maiores delongas, ordenei: "Fogo!" Os corpos foram caindo. Os olhares deles nos atingiam com uma súplica difícil de ser esquecida. Quando tombou o último, talvez o mais novo, sai pulando sobre os corpos a fim de verificar se ainda havia algum vivo. Todos estavam mortos. Era preciso dar o fora dali rapidamente. Quando olhei para o último homem, tive a impressão de que ele dirigira os olhos para mim. Meus amigos já se achavam distan-tes e eu não podia ficar ali.

O relato cruel e brutal soava aos meus ouvidos como algo estranho. Preferi não discutiro seu alcance, porém o interrompi para falar sobre o assombro daquele último homem. Principalmente o seu olhar que deve ter simbolizado todas as palavras do mundo.

- Tenho certeza que ele escapou daquele último combate e agora veio ao Brasil ajustar contas comigo. Não importa: eu ou ele irá morrer.

Tranqüilizei-o dizendo que jamais iria acontecer um caso desse, que o Brasil para os europeus era uma terra distante, perdida na América do Sul, que eles não odiavam os brasileiros, que o Brasil entrou na se-gunda guerra forçado pelos norte-americanos, que as feridas da guerra estavam saradas, cicatrizadas...

Nos despedimos. Ele seguiu para o seu passeio de sempre e eu fui cumprir a minha obrigação burocrática.

Quando voltava para casa, ao chegar à praça, vi a enorme aglomeração de pessoas em torno do banco onde jazia o cadáver do meu amigo. Os comen-tários eram desencontrados, mas um homem terminava de dizer que recordava ter visto o morto sentado no banco conversando com um "gringo". Perguntei pelos traços físicos do estrangeiro, porém o informante não soube precisar.

Horas depois, no Instituto de Medicina Legal, esperei com ansiedade a divulgação da causa da morte. E quando li que fora provocada por uma bala cabeça, fui ao médico e contei que o criminoso deveria ser um alemão. O médico sorriu e disse:

- Sua história é muito fantasiosa. O tenente simplesmente se matou com um balaço na cabeça. Conforme informações dos familiares ele saíra de casa levando dentro da bolsa de couro uma pequena pistola alemã munida de silencioso. Uma jóia de arma!, disseram. Quem primeiro aproximou-se dele, logo após o tiro, deve ter carregado a arma e a pasta.

Nada respondi ao médico. Retirei-me afogado numa terrível dúvida: onde terminava a realidade e começava a ficção? Como devemos qualificar os pensamentos, absurdos ou não, que nos invadem a cada instante? E foi um desses que me convenceu de que o tiro que matara o meu amigo, no pior das hi-póteses, fora disparado pelo fantasma do homem abatido há décadas no velho castelo medieval italiano num distante dia frio e cinzento.

in Diário de Pernambuco, 30/08/98

 

página inicial . sorte . curiosidades . jegão . kriare . links . livros . planeta luz . música . no ar . piadas . receitex . roteiros